Artigo 3: Temas de Reflexão

Temas de reflexão

Para além dos temas em comum, considero que há ainda outros temas para reflexão, que apesar de não serem debatidos nas entrevistas, atravessam ou decorrem dos conteúdos.

- Conceitos: Comunidade; Empowerment; Arte-Pedagogia-Terapêutica

Uma Comunidade é um grupo de pessoas que partilha um "local". Mas esta definição começa a dissolver-se quando falamos de um grupo de pessoas que partilham uma cultura. Ou uma língua. Ou um problema. É a progressiva imaterialidade da noção de "local" que torna volátil a noção de comunidade. A "comunidade" torna-se uma ideia vaga, anónima, imaterial. Definir uma comunidade por um critério (habitantes de um bairro, imigrantes, adolescentes) será reforçar um laço, mas também ultrapassar uma série de elementos linguísticos, físicos, históricos, culturais e, em última análise, a evidência de que um grupo é um conjunto de pessoas singulares.
A ideia de Empowerment é das mais divulgadas porque é da mais fortes e intuitivas: a velha verdade do "não dês o peixe, ensina a pescar". Mas é nesta qualidade pedagógica e altruísta que se torna, também, uma das ideias mais difíceis de pôr em prática. Porque implica que há, por princípio, uma relação desigual de poder a ser reposta (e dependente dos critérios que reconhecem poder) e, por outro lado, que há um processo a realizar no tempo, sem melhor critério de sucesso que o da auto-suficiência do outro através da acção e da consciência. No caso de projectos artísticos é neste conceito que assenta a diferença entre arte comunitária e arte na comunidade. Não basta aparecer "ao lado" da comunidade. A participação, a troca, a compreensão, o tempo, são elementos essenciais para "desenvolver poder".
No contexto da arte comunitária (e não no de arte na comunidade) há projectos que deslizam entre arte, pedagogia e terapêutica. O processo de trabalho da Formaat é um exemplo. Começa-se por encontros onde os participantes vão conversando, partilhando experiências, opiniões, confiando, gerando laços entre as pessoas, criando um grupo de trabalho. De seguida, o grupo começa a materializar as histórias, sensações, imagens na estrutura de um evento público, um espectáculo. Para preparar esse momento será necessária uma pedagogia (sobre dramaturgia, interpretação teatral, sobre teatro-fórum). Finalmente, o espectáculo é apresentado como um produto final, artístico. O teatro-fórum (técnica do Teatro do Oprimido) é também um bom exemplo da forma como as coisas por vezes se podem confundir num processo comunitário e participativo: levado ao extremo da arte, o Teatro do Oprimido é uma pedagogia de construção dramatúrgica, de teatro documental, político, onde importa o tipo de representação; levado ao extremo da terapêutica é uma técnica que se aproxima bastante do Psicodrama através do role-play, onde os participantes simulam momentos traumáticos como experiência de reflexão.


- o Artista como Agente

Aqui, o artista deixa de ser considerado no circuito restrito do contexto artístico, do seu espaço referencial, onde se espera que produza conteúdos, objectos, eventos, discursos que dialogam com os critérios de avaliação do seu meio. Fora do seu "local", passa a ser considerado individualmente, e não por relação à sua disciplina, que exigiria uma definição do seu "lugar". Enquanto profissional, desenvolveu um conjunto de competências técnicas e uma perspectiva do mundo, a sua "visão" artística, uma identidade. Este é o perfil de um novo artista, interdisciplinar, criador de projectos pontuais, a quem a "comunidade" lhe interessa pela sua "realidade". O Comissário Europeu da Cultura, Xavier Troussard, dizia recentemente que "Uma coisa é a actividade como artistas, outra são as competências que desenvolveram na sua prática e, em vez de trabalharem num bar, a questão seria se trabalhariam como intermediários ou se essas competências poderiam ser aplicadas noutra coisa qualquer." (Revista Obscena #21) O artista actua como agente, quer como alguém que introduz arte na comunidade, ou alguém que dali extrai conteúdos para a sua arte, assim como enquanto profissional que domina uma técnica e a utiliza como ferramenta de desenvolvimento comum. Um mediador, não na clássica dicotomia entre a arte e a não-arte, mas como alguém que está no meio de grupos e pessoas, quanto muito envolvido por classificações de origem sociológica, antropológica, psicológica, urbanística, política.
Agora, o que o artista tem oportunidade de criar são novos lugares, de onde se possam produzir novos olhares e discursos. Mais que uma comunidade, o artista tem a oportunidade de criar um "local".
(o artista de teatro diria: um "theatron")


- Cidades Culturais

Este é um dos temas recorrentes que mais me interessa na forma como problematiza as consequências da arte comunitária/ na comunidade. Frequentemente acontece que uma cidade importante possui um bairro antigo e descuidado, mais ou menos central, onde as rendas são baixas. Com o tempo, o bairro vai sendo ocupado por imigrantes, estudantes, "ocupas" e artistas, isto é, comunidades de baixo rendimento económico. O bairro começa a gerar uma comunidade própria, feita de identidades cruzadas e espaços abertos no tecido comunitário. Os artistas começam a organizar-se, a criar exposições, espectáculos, concertos, publicações, O bairro torna-se um pólo cultural, apesar de continuar inseguro e sem condições. Algum tempo depois, o bairro já tem teatros e pequenas galerias, cafés com esplanada, lojas de roupa. A zona começa a atrair serviços, o poder local melhora as infraestruturas e transportes, as rendas começam a subir. Com o tempo, os artistas deixam de poder residir na área, os imigrantes e estudantes também são empurrados pelo alto nível de vida e a zona torna-se um bairro residencial ou um centro comercial e cultural. Em breve, chegarão os turistas.
Este retrato demonstra, por exagero, aquilo que um projecto de arte comunitária pode ajudar a criar, isto é, a ficção de uma comunidade e de uma zona como centro cultural, como lugar de visita. A visibilidade que os projectos de arte comunitária/ na comunidade alcançam e o crescente interesse dos media e da sociedade em geral, podem gerar julgamentos rápidos, imagens fixas, votando a comunidade que se expõe à qualidade de "experiência exótica". A arte comunitária/ na comunidade procura integrar e, nesse sentido, procura pôr em contacto, comunicar. Assim, a questão aqui não é tanto sobre as cidades criativas, mas sobre como uma má comunicação do projecto comunitário pode criar o efeito perverso das cidades criativas: em vez de pôr em contacto, separa irremediavelmente. Ao estimular a identidade de uma comunidade, o projecto comunitário capacita-a para agir, para se apresentar com um rosto, uma representação de si própria. Mas na ânsia de querer destacá-la, comunica-a como uma representação à parte, fechando a comunidade na sua própria identidade. Esta identidade fica destinada a implodir ou a ser explorada como superfície e esterótipo, não de representação real, mas de representação do "típico".


- Políticas Culturais

O tema não pode ser dissociado da arte comunitária/ na comunidade uma vez que o horizonte social articula e põe em confronto as dinâmicas culturais e as dinâmicas políticas. O tema das políticas culturais divide-se em dois: por um lado, trata-se do conjunto de medidas de legitimação e apoio da actividade: subsídios, apoios, parcerias; por outro lado, trata-se das escalas políticas e da hieraquia de interesses em torno da actividade comunitária. Importa compreender o lugar do artista e do seu projecto no contexto político mais alargado. Mas, de forma genérica, considere-se que os artistas devem reinvindicar a legitimação do seu estatuto de agentes mediadores, do seu trabalho comunitário ou em contacto com a comunidade. Por outro lado, os poderes públicos devem reconhecer na arte comunitária/ na comunidade a sua capacidade de integração social, desenvolvimento de identidade, promoção da participação cívica, criando mecanismos de apoio e sustentabilidade dos projectos, não necessariamente apenas através do poderes públicos (e menos ainda do poder central). O poder local, as fundações, universidades, teatros e museus, os agentes culturais, sociais e económicos de um bairro, de uma cidade, de uma região, são também agentes políticos, não decisores, mas influentes.
Por outro lado, todo o projecto no horizonte social é atravessado por interesses políticos e económicos que ultrapassam o nível do projecto comunitário. Há uma comunidade que se integra noutra maior e assim sucessivamente. Em cada nível, uma nova configuração de interesses. A quem serve este projecto? Primeiro aos participantes ou ao artista. E a seguir? Na criação de um projecto de arte comunitária/ na comunidade é importante reconhecer o que implica para os diferentes níveis:
- o processo de questionamento e experimentação próprio dos processos artísticos;
- a interacção entre pessoas com diferentes valores culturais, entre artista e comunidade mas também agitando subgrupos dentro da comunidade;
- a visibilidade que decorre da actividade artística, a visibilidade do bairro e das suas ruas, dos seus protagonistas e dos seus ideais;
- o legado deixado pelo projecto: um grupo de teatro que fica formado, um espaço de exposição que fica reconhecido, um festival de música que se deseja manter, a publicação de histórias que não se querem esquecer.



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